História
da Mineira 8
- 02 de novembro
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o mundo é real -
– Eu estava registrada no Bolsa-Escola, recebia quase duzentos reais
por todos os meus filhos, tinha que mantê-los na escola, isso até o ano
passado. No final do ano passado, quando tive que atualizar o meu cadastro eu
perdi.
– Perdeu, mas por quê?
xx– O programa vai até os quinze anos, e a minha
mais velha, a Sheila tinha saído da escola, ela tinha quatorze, eles
descobriram e eu perdi, era quase duzentos reais.
– Mas e os outros, eles não estavam na escola? Não vale?
– Para ganhar a bolsa a família tem que manter todos os filhos até os
quinze anos na escola, a Sheila, minha mais velha, tinha fugido de casa.
– Mais agora ela não tem dezesseis anos?
– É, agora tem, agora tenho que esperar abrir o cadastro aqui no meu
bairro de novo para eu poder me cadastrar novamente. Todos os outros estão na
escola.
***
O mundo tecno-burocrático é real. Realmente,
estipula-se determinado objetivo, critérios x, y e z, todos devem obedecê-los,
não há flexibilidade e sensibilidade que possa nortear programas que procuram
atingir milhões e adequá-los aos seus propósitos, talvez pretensão idealista
nossa imaginar que os programas sociais pudessem em sua amplidão adequar-se a
incrível variedade da vida social. O diálogo resumido que transcrevi acima
entre a Mineira e aquele que lhes escreve mostra os caminhos kafkinianos do mundo em
que pisamos, um mundo em que o irreal e o impossível tornam-se padrões da
realidade. Nesse sentido, cabe a nós compreendê-los e modificá-los, a revolta
juvenil e/ou violenta já provou historicamente que os fins não justificam os
meios.
***
Dois de novembro de 2003, no “dia dos mortos”
visitamos os vivos. Inicialmente pretendíamos dar apenas uma passada na casa de
nossa amiga para lhe entregar algumas cópias gentilmente cedidas pela Mônica e
pela Raquel das fotos da festinha do “dia das crianças” e saber se o
Adilson já conseguira preparar algumas das bonecas. Paulo, nosso amigo
advogado, foi o carona da vez, sua participação em nosso grupo reduzido, além
da companhia amiga, tinha sua razão de ser na necessidade de conversar com o
Adilson, o marido da Mineira sobre a regularização de sua situação legal.
Abstenho-me aqui de adentrar nos tortuosos caminhos jurídicos para lhes
esclarecer melhor sobre a questão, compreendi que ela está encaminhada, embora
ainda deva passar algum tempo que seus documentos estejam todos regularizados,
algo fundamental para que sua futura vida profissional tenha prosseguimento.
Ao chegarmos a casa da Mineira encontrando a
sorridente amiga lavando roupa no tanque, agradecida com o fornecimento de água
regularizado, a primeira atitude do Paulo foi entender-se com o Adilson sobre os
próximos passos necessários sobre a questão legal. Ao passar pela pequena
sala/cozinha e enfiar meu rosto no quarto de dormir um coro de seis vozes
ressoou:
– Tiiiiiio! Oi, tio, oi, tio!
Sidney, Shirley, Alex, Alexandre, Shisleine, Sávio,
todos exclamaram juntos. É uma delícia ver como essas crianças nos recebem
– pudores cruéis e bobos cutucam-me sobre se não esperam mais do que
conseguimos ou pretendemos dar, o mundo é real!
– Nós estávamos brincando, tio – explica-me
a Shirley.
Alexandre me chamou para dentro com a mão,
queria mostrar o joguinho que havia ganho, exige a minha atenção por alguns
minutos quando supõe que meu interesse pelo jogo seria igual o seu e se põe a
me explicar o seu funcionamento. As meninas logo rodeiam a Gisele quando essa
aparece, inutilmente, o campeão do torneio “quem fica no colo da tia” é
sempre o Sávio.
Quando lhes mostro as fotos deles, o foco de
interesse muda de eixo. As fotografias são avidamente disputadas, quase
literalmente a tapa, passam de mãos em mãos, os comentários de cada um sobre
cada um que aparece nas fotos domina o cenário por vários minutos. A Mineira várias
vezes teve que apartá-los, “não, as fotos são de todos, não é porque você
aparece na foto que a foto é sua”.
Ainda brincamos por meia hora com eles, era o tio
que tinha que levantá-los e jogá-los ao ar, era um que queria brincar de
treme-treme, outro também queria ficar um pouco no colo da tia, carência e
afeto, crianças e alegria reúnem-se e nos fazem sorrir.
Ao acalmarem-se um pouco consegui desenvolver o
diálogo com a Mineira que relatei no início. Ela me contou que vendeu um pouco
do papelão que conseguira juntar e o que o Eduardo lhe levara na outra semana
juntamente com algumas latinhas, conseguira 7 reais. Ela parou de sair a noite
para catar papelão, recebera reclamações da escola. Adilson tem procurado se
manter sempre perto da sua residência enquanto a sua situação legal não
estiver totalmente resolvida, a Mineira, mesmo antes dele reaparecer, saia pela
rua com o Sidney e a Shirley, os seus filhos de 12 e 10 anos, para ajudá-la. O
que acontecia, no dia seguinte os dois, logicamente cansados, dormiam na escola
e na instituição da prefeitura em que ficavam fora do horário das aulas. Ela
pretende no curto prazo procurar material, papelão e latinha, perto da sua casa
e, sorrindo timidamente, ainda nos disse que gostaria que seu marido a ensinasse
a fazer as bonecas. Como relatamos em texto anterior, ela tem pretensões de,
assim que for possível, acabar a sua alfabetização, e já confidenciou que
quer aprender outras coisas, como disse: só sei cuidar de casa, criança, cozinhar e catar papelão, queria
aprender a ler, fazer outras coisas. Deus queira que ela consiga.
Adilson, assim que terminou sua conversa com
Paulo, o qual se juntara ao rol das crianças, voltara ao batente. Quando
chegamos o encontramos empenhado na construção das suas bonecas, voltara a
elas. Suas bonecas têm graça, está construindo um bom lote e nos
comprometemos a ajudá-lo a tentar vender seus produtos nesses dois últimos
meses do ano. Prestimoso, contou que o pedreiro que seu Roberto, da Grua,
enviara, e com o qual realça que fez amizade, está terminando o trabalho, a
Sabesp deverá ligar a casa na rede de esgoto nos próximos dias. Ainda
pacientemente nos mostrou um pouco como trança as linhas no seu trabalho de
artesão. Conversando, relembrou que também é marceneiro, e que espera ter
condições de produzir objetos de madeira no futuro. Procurei incentivá-lo a
continuar nessa lide, lembro que lhe disse:
– O importante no trabalho é engrenar. Uma
coisa leva a outra.
Reconstruir a vida pede, antes de tudo,
tenacidade.
Comprometemos a passar rapidamente no próximo
fim de semana para pegar as primeiras bonecas desse lote que devem ficar prontas
até o sábado e disponibilizaremos para todos.
Ao começarmos a nos despedirmos, vi as crianças
sutilmente cochicharem no ouvido da Gisele, seus cabelos e rostos revezavam-se
se escondendo para falar atrás dos cabelos compridos da nossa amiga. Mais tarde
ela nos explicou:
– Eles e a Mineira me pediram se conseguiria
algumas camisetas, calcinhas e cuecas para elas, as camisetas estão com muitos
furos, e as meninas quase não usam calcinhas em casa, as poucas que tem estão
cheias de furinhos, os meninos a mesma coisa. Shirley ainda pediu um tanto tímida,
remédio para piolhos. Crianças gastam mais as roupas, além do próprio uso
elas crescem.
Vamos tentar arrumar, sem promessas que possam
ser quebradas, alguma coisa nesse sentido. Procuro evitar prometer, digo
constantemente que tentaremos, deixar de realizar algo prometido pode ter um
impacto negativo emocional maior.
Antes de finalmente sairmos ouvimos a Mineira
queixar-se que a sua filha mais velha novamente saíra de casa.
– A Sheila discutiu com o Adilson e saiu de
casa com o marido dela.
Já notara a ausência dela ao chegar. Trouxera
uma foto para ela, lembrei-me que no dia da festinha a Raquel tirou uma foto
dela com o cachorrinho no colo e ela nos cobrou depois uma cópia desta foto.
Continuando a via crucis das mães que sofrem, quando não é por um filho é
por outro ou pelo marido, ela, no canto, reafirmou que a filha não se dá bem
com o Adilson, acabaram por discutir, talvez até pela sensibilidade da
gravidez. Para a casa da sogra também não iria
porque não dava bem com esta, temporariamente acabou indo para a casa de uma
amiga da Mineira, ali mesmo no Glicério. Nossa amiga, a Mineira, lamentava,
mas, como sempre, se mostrava forte, exemplo para todos.
abraços
Maurício
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