História
da Mineira 7
-
12 de outubro, dia das crianças –
- não tem nada pior
do que ver criança sem ganhar presente!!!
A semana foi
atribulada, desde que tivemos a idéia de organizar uma
confraternização mais alegre com a família da Mineira através
de uma pequena e simbólica festinha no “dia das crianças”,
nos vimos obrigados a reunir pessoas e materiais para o, digamos,
evento.
Paralelamente a
isso, acompanhamos os procedimentos necessários para a realização
da gentileza a qual o senhor Roberto se predispôs. Durante a
semana ele próprio e funcionários da sua firma, Grua, estiveram
algumas vezes na casa da Mineira e do Adilson. Verificaram no
local o que seria preciso fazer para a ligação da rede de esgoto
pública com a casa deles, foram na Sabesp para se informarem dos
trâmites burocráticos e técnicos indispensáveis, e compraram
os materiais inicialmente necessários para essa obra. Um
eletricista deverá visitá-los para verificar e melhorar a precária
instalação elétrica da casa. Quando ele esteve lá, a Mineira
lhe mostrou onde tomam banho, “lugar bastante precário” -
segundo suas palavras - "além do que o chuveiro que existe
no local não funciona porque a energia elétrica é emprestada e
não agüenta, e o
vizinho que empresta a
energia só não a cortou por causa das crianças".
A partir da
segunda-feira, seis de outubro, começamos a reunir a equipe que
nos acompanharia no domingo, dia doze. Troca de e-mails de cá pra
lá e de lá pra cá, até o meio da semana conseguimos a promessa
do comparecimento de aproximadamente dez pessoas, sem contar os
outros que não iriam pessoalmente, mas nos ajudariam com
presentes e guloseimas.
Presentes,
independente da condição sócio-econômica, da carência
material ou não, as crianças da nossa sociedade têm mente emoções
formadas por uma série de condicionamentos culturais que os fazem
igualar o significado de festa ao de presentes. Bem, dado esse
posto, fomos a luta.
Combinara com a
Mineira para que convidasse cerca de vinte crianças, incluindo as
suas, para a noite do dia doze.
Nossos amigos,
Mônica e Álvaro, que haviam se interessado pela história ao ler
as crônicas das visitas anteriores, ofereceram-se para nos
ajudar. Surpreendentemente em poucos dias recebemos deles longa
lista de brinquedos já disponíveis e embrulhados. A lista era
variada, de jogos infantis os mais diversos a carrinhos, bichos de
pelúcia e bolas. A inesperada quantidade de presentes ofertados
por eles provocou-me o primeiro suspiro de alivio da semana, a
questão dos presentes deixara-me apreensivo.
A semana foi
correndo, as novas adesões ao grupo também ofereceram ajuda.
Paulo Cursino, aproveitando o “dia das crianças” conseguiu
grande doação de brinquedos na firma em que trabalha,
sexta-feira recebi exultante e-mail dele confirmando os presentes
ofertados pelos seus colegas de trabalho. O seu entusiasmo
contagiou a todos de tal forma que se estendeu até nós, o que me
leva a abrir o texto aqui e deixar que ele relate o episódio com
suas próprias palavras:
Tudo
começou na quinta-feira, nove de outubro, aqui no Panamericano
onde trabalho, quando a Priscila (assistente de supervisão), teve
a idéia de pedir a todos os funcionários do Call Center que
trouxessem brinquedos e bichinhos de pelúcia para enfeitarem suas
mesas de trabalho. Nisso, tive a idéia de sugerir a todos que, após
enfeitarem suas mesas, doassem estes brinquedos para a nossa
campanha. Para a minha alegre surpresa, todos sem exceção,
compraram a idéia com grande entusiasmo.
No
dia combinado, chegando no meu horário de trabalho, vi o nosso
ambiente de trabalho repleto de brinquedinhos... todas as mesas
estavam decoradas... a empresa estava cheia de bexigas brancas,
azuis e rosas... Era uma alegria só!
Na
hora do meu almoço, fui até uma doceira e comprei um monte de
pirulitos e distribui para os funcionários... foi legal ver todos
chupando pirulitos... tinham voltado a ser crianças novamente...
No
final do dia, um por um veio me trazer os brinquedinhos... era de
admirar o brilho nos olhos de cada um. Para muitos, era a primeira
vez que participavam, mesmo que indiretamente, de um trabalho
voluntário. Alguns até diziam: "que este brinquedo faça
alguém feliz, pois durante muito tempo me fez feliz"... a
cada palavra destas me vinha a imagem da criança que iria receber
os brinquedos... ai eu dizia aos meus amigos "Com certeza, o
seu brinquedo fará muita criança feliz" ...foi legal ver a
satisfação dos meus colegas!
Foram
tantos brinquedos doados que precisei de duas caixas grandes e três
sacos de plástico grandes, além disso a minha chefe, a Renata,
me deu uma ótima idéia: recolher todas as bexigas e também doar
para a criançada. Foram mais cinco sacos plásticos, aqueles de
lixo de... sei lá quantos litros, era enorme e couberam muitas e
muitas bexigas. Não tinha como levar tudo na sexta-feira. Deixei
para buscar no sábado com o meu carro.
No
sábado cedo tava a maior chuva, lá fui eu a minha digníssima Lúcia
buscar todos os brinquedos. Enchemos todo o carro. Quase não
tinha lugar para respirar de tanto brinquedos e bexigas. Antes de
ir pra casa passamos no supermercado para comprar os doces e
balas. Hummm... só em lembrar me dá água na boca, escolhi todos
os doces e balas que eu adorava quando pequeno imaginando que a
criançada iria adorar tanto como eu adorei... Sentia-me voltando
a ser criança, mas com uma grande diferença, antes tinha vontade
de comer o doce e muitas vezes meus pais não podiam comprar... e
hoje, graças ao meu bom Deus, foi me dada a oportunidade de
oferecer os doces.
Foi
uma delícia de compra: compramos bis, balas, maria-mole,
suspiros... tinha o branco e o rosa, doce de leite... aquele que
você faz um furinho na ponta e chupa... hummm... aposto que quem
ler este texto, vai sentir a maior vontade de comer...
Continuando
a minha história, ainda no sábado, chegando em casa, ao tirar
todas as coisas do carro e subir para o meu apartamento, tive
outra grande idéia – a princípio a Lucia não a aprovou, mas
depois, com boas argumentações, ela aprovou.
–
O que eu fiz?
Espalhei
todos os brinquedos e bexigas pelo meu quarto, carrinhos
misturados com bonequinhos, bexigas misturadas com ursinhos,
bonecas barbies misturadas com chocalhos, etc, etc..., ficou a
maior bagunça. Foi como se eu preparasse aquele quarto para que
as criancinhas espirituais pudessem brincar – olha que eu tenho
certeza que elas iam lá brincar, tanta certeza, que deixei a luz
do quarto acesa durante toda a noite.
No
domingo, lá fomos nós, a Lúcia e eu, reunir toda aquela
"bagunça" e separar o que era de menino e o que era de
menina. Advinha quem ficou responsável pela "ala" dos
meninos: lógico que eu, né! Outra vez, voltei a ser criança,
ops, voltei não, acho que sou sempre uma criança, às vezes mais
séria, às vezes mais responsável, mas quase sempre a criança
bem humorada e de bem com a vida. Resolvi separar os brinquedos em
kits, imaginei exatamente o que gostaria de ganhar e separei
caminhãozinho de bombeiro com bonequinho e mais um carrinho, em
outro kit coloquei um helicóptero mais um bonequinho mais um
carrinho, e assim foram feitos vários kits, uns quinze
aproximadamente. A Lúcia fez os kits femininos usando o mesmo
critério e também na mesma quantidade.
Após
embrulhar todos os presentes, lá fomos nós para o Centro Auta de
Souza nos reunir com os demais amigos... “pra variar”,
chegamos com um pouquinho de atraso... já estavam todos reunidos.
Eu
fiquei muito feliz com o que vi por lá... havia muitos outros
presentes além do nosso... o primeiro pensamento que tive foi:
"nessa noite faremos muitas crianças felizes". Então,
organizamos tudo e lá fomos nós para a grande festa.!!!
Nosso querido
Eduardo Chamon, apesar de não comparecer pessoalmente no domingo,
desdobrou-se de tanto que procurou nos auxiliar. Visitou mais de
três vezes a loja de variedades perto de seu local de trabalho.
Em um dos locais, por ser conhecido como o
pidão, na hora de pagar a dona do estabelecimento não
aceitou seu dinheiro, recebeu tudo o que foi escolhido como doação.
No domingo a noite enviou-nos uma caixa de presentes embrulhados
por seu pai e sua mãe. A caixa continha desde pequenas bolas a
dominó, bonecas, yo-yo e até um jogo de mágica do mr. M.!!
Ao chegar o sábado
de manhã minha preocupação em relação aos presentes
invertera-se, será que estávamos
levando presentes demais? No mesmo dia a Gisele asseverou-me
que não:
– Não tem
nada pior do que ver criança sem ganhar presente!!! É melhor
sobrar do que faltar, levamos como extras os outros presentes. E
tem mais, o que importa são as brincadeiras, a bagunça, enfim
nosso bom intuito... certo?
Sexta-feira a
noite Ivete e seu marido Leonardo entregaram-me despretensiosa
sacola, ao abrir vi que continha muitos pacotinhos com brinquedos
tipo “cobrinha” e pequenas presilhas coloridas de cabelo para
meninas e moças – eles não poderiam imaginar o sucesso que
tais presilhas iriam fizeram no domingo.
– Só os
presentes? Nós não vamos brincar com eles, não vamos levar
nenhum docinho, um chocolate?
Tal questão
começara a nos assaltar dez dias antes do “domingo das crianças”.
A partir do momento em que os novos voluntários foram confirmando
a disposição de ajudar passamos então a distribuir “tarefas
doces” para cada um. Paulo Cursino e Lucia, sua esposa,
prontificaram-se a levarem caixas de bis e sacos de balas, Fred e
Patrícia também aceitaram contribuir com chocolates e balas,
nossas queridas Raquel e Cecília prometeram levar pacotes de
sonhos de valsa, Gisele ainda comprometeu-se com bombons ouro
branco. Além dos “doces prontos”, Guará, nossa amiga que não
pôde ir pessoalmente, preparou um bolo delicioso já cortado em
mais de cinqüenta pedaços e Solange nos avisou que levaria cem
brigadeiros da famosa receita de brigadeiros da sua mãe.
Com a volumosa
colaboração relaxamos e engatilhamos a contagem regressiva. Fred
e Paulo ainda haviam se oferecido a vestirem-se com roupas de
palhaço para brincarem com as crianças. Ainda apreensivo com
alguma possível surpresa de última hora que esfriasse o espírito
de boa vontade incorporado por todos os amigos que pretendiam
levar um pouco de alegria àquelas crianças, reunimo-nos no
Centro Espírita Auta de Souza no domingo a noite. Um a um, todos
foram chegando e colocando suas contribuições sobre a mesa do
salão. Iniciou-se uma hora de intenso trabalho de organizar todas
as guloseimas, as balas, bis, bombons e pirulitos foram misturados
e agrupados em pequenas sacolinhas, de “aperitivo” Solange
ainda serviu um pouco de brigadeiro para todos. O instinto
infantil refletia nos rostos ali presentes. Os presentes foram
sendo colocados em sacolas grandes conforme fossem para meninos e
meninas, para crianças menores ou de embalagens pequenas. Mônica,
Raquel e as outras meninas tentavam organizar a pequena bagunça
dos presentes, todos embalados e etiquetados. Nesse ponto
lembro-me de minha surpresa ao pegar um dos pacotes e ler na sua
etiqueta: “a noiva do Chuck”. Não podia ver a cara da suposta
boneca-noiva, mas uma ironia surreal subiu-me a mente ao imaginar
o que poderia ser uma boneca denominada noiva do boneco-assassino
dos filmes de Hollywood.
Ao meu lado
alguns se transformavam. Fred tornou-se um ‘palhaço” e logo
Graciane propunha que a Patrícia pintasse seu nariz com batom
vermelho – ao final da noite divertíamo-nos com a sua
dificuldade de tirar essa decoração facial, dessa vez Graciane
propôs que ele usasse demaquilante. Paulo cedera a sua vez de
“palhaço” para Lucia, tornando-se esta a “palhaça tia Lúcia”.
Raquel, a fotografa oficial da expedição “adventure dia das
crianças”, adornou-se com uma super-máquina fotográfica no
peito e duas enormes orelhas de Minnie no alto de sua cabeça; pra
ajudar ela estava de blusa vermelha, e foi aí que alguém a
apelidou de Raq-Mouse.
Às nove horas
da noite encostávamos os carros ao lado da casa da Mineira. Assim
que desci do carro algumas meninas surgiram na porta com a
Shirley, a segunda filha da Mineira, na frente. Ganhei um beijo de
algumas delas e logo fui interrompido pela Shirley que
incessantemente perguntava-me:
– Cadê a
tia? A tia veio? Cadê a tia?
Procurava pela
Gisele, por quem já criou laço afetivo com as visitas, mas essa
estava em outro carro.
Desse momento
em diante a hora voou. Descemos com os doces primeiro, aos poucos
fomos entrando na casa dela, embora já cercados pelas crianças.
Paulo, nosso amigo advogado, tentava ajudar-me a organizar um
pouco a criançada – tarefa inglória. Brigadeiros, bolos e
bombons eram vorazmente consumidos e repetidos. Adilson e algumas
outras mães mantinham-se fora da pequena casa, já abarrotada de
crianças. Alguns de nós passavam oferecendo um pouco do
brigadeiro e do suspiro que ainda não havia sido devorado.
Apresentava alguns dos nossos amigos a Mineira e ao Adilson, eles
só os conheciam de nome, enquanto outros logo desciam os pacotes
de brinquedos dos carros, dirigindo-se com eles ao fundo do quarto
da Mineira para iniciarmos a distribuição.
Logo ouvi o que
me pareceu ser a voz da Raquelzinha:
– Primeiro as
meninas, primeiro as meninas, quem não for menina tem que esperar
do lado de fora!
Entrei para
espiar e ver se podia ajudar, mas sim, chegar até o local em que
as nossas meninas começavam a distribuir os presentes equivalia a
uma corrida de obstáculos. Na cozinha/sala tropeçávamos em inúmeros
“pequenos seres”, ao chegar a uma distância de dois metros
dos beliches que ficam no quarto só pude sorrir. Algo que com
muito esforço e boa vontade podíamos chamar de fila formara-se.
As meninas davam o nome e recebiam um presente. Mônica estava
sentada na cama com a prancheta no colo, ladeada por vários
outros dos nossos que tentavam ajudá-la. Lucia, Raquel, Cecília,
Graciane, Patrícia e Paulo tentavam acertar os presentes com os
presenteados, para cada um que se apresentava para receber um
pequeno jogo diplomático era necessário. Poucos minutos depois
os meninos entraram para receberem seus presentes.
Aqueles
momentos da entrega dos presentes foram mágicos, se assim posso
me expressar. Alguns dias depois Lúcia me disse o quanto aquilo
mexeu com ela: sinto que algo mudou, a minha casa ganhou cor e vida, mantive algumas
bexigas e bichinhos. Nos momentos em que me sinto sozinha ou
deprimida lembro-me daquela hora com aquelas crianças, sinto a
presença delas, é como se estivesse vivendo aquela emoção
novamente. Lembro dos seus olhinhos, de cada criança pegando o
seu brinquedo, isso me encheu de alegria e esperança. Amor...
aquelas crianças tinham e doaram, que vontade de levá-las para
casa e abraçá-las. Mônica,
Raquel e eu selecionávamos cada presente sentindo a emoção da
criança que estava a nossa frente, realmente agora sei como se
sente um Papai Noel!! Foi uma emoção bem diferente da festa de
fim de ano, realizada e idealizada pelo nosso amigo Eduardo
Chamon. Estávamos próximos de crianças que veremos pelo menos
uma vez por mês, ao menos uma parte delas. Estávamos dentro da
casa delas, dentro do quarto delas distribuindo os presentes, estávamos
fazendo parte da vida dessas crianças e dessa família, era como
se visitássemos um amigo.
Foi uma festa!!
Assim que sai um pouco na calçada em frente a casa vi alguns
meninos aparecerem correndo com seus presentes para mostrarem para
as mães e para os outros amigos. Logo mais outra cena chamou-me a
atenção, a cinco metros da casa, nosso amigo Paulo, o advogado,
montara na outra calçada um dos jogos presenteados e iniciara uma
partida com cinco meninos, todos no maior entusiasmo.
Algumas das
crianças olhavam os presentes recebidos com um misto de afeto e
orgulho, Alexandre, nosso amiguinho de seis anos, vestira as luvas
de goleiro com emblema do Corinthians que ganhara e não tirou até
a hora em que fomos embora. Shisleine, com seus cinco anos,
maravilhava-se com a sua boneca, levantava-a e mostrava a todos
que passavam por ela. Quando mais tarde abri o pacote de presilhas
as meninas cercaram-me ávidas, confesso que foge à minha
compreensão o fetiche atrativo que isso desperta, só sei que fui
cercado por tal quantidade de mãozinhas estendidas que não
sossegaram enquanto não se certificaram que o pacote estava
vazio.
A atração
doce da noite foi o Sávio. Depois de um grude terrível na
Gisele, consegui transferi-lo para o meu colo por alguns minutos,
transferindo-o depois para a Cecília, saio de vista e ao voltar
pouco depois lá está ele de novo no colo da Gisele, embora
fazendo graça com todos. Cecília fazia cócegas nele ao que ele
respondia com seu belo sorriso e tentativas de alcançá-la. A
tietagem, digamos assim, em volta dele, prosseguiu até a hora de
irmos embora.
Nesse ínterim
Solange trouxe-me a nota triste da noite. Fôra até embaixo do
viaduto ao lado da casa com a Mineira para pegar o nome de uma moça
que está grávida e mora embaixo do viaduto e já é mãe de duas
crianças, uma menina de quatro anos e um menininho de dois anos,
para que posteriormente fosse levado um enxovalzinho para o neném
que vai nascer, e ao voltar disse-me que ela estava extremamente
perturbada e desolada, uma “vizinha” de baixo do viaduto, que
também está grávida, pediu para levar sua filhinha de quatro
anos para dar um passeio e sumiu com a sua filha, isso já tem três
dias, seu abatimento era tal que não conseguia nem falar direito.
Não conseguia dar seu nome, não conseguia conversar, depois,
devagarinho, voltaram lá mais uma vez e conseguiram conversar com
ela, pediu comida, levamos uns doces, pediu depois uma roupa e
levamos uma calça, algumas blusas e toalhas que estavam no carro
do Álvaro, mas sobre o assunto da filhinha, ela nada mais falou,
parecia meio anestesiada. Rezemos por elas.
Um pouco
depois, enquanto recebia outras crianças que haviam acabado de
chegar – aquele número de vinte crianças fora uma quimera,
percebia –, olhei ao lado e vi a Mônica e a Mineira
concentradas em uma agradável prosa a dois, tal diálogo
lembrou-me a idéia inicial que me levara a esse trabalho. Mais do
que dar algo, realizar uma ação social que se baseasse na
integração psico-social entre atores de condições sócio-culturais
distintas, era o “dialogando”. A cena das duas conversando
naturalmente era o retrato da nossa idéia inicial.
No dia seguinte
a Mônica contou-me como foi a sua conversa com a Mineira: o nosso papo foi ótimo. Eu estava encostada na soleira da porta de
entrada da casa e ela estava de pé bem ao lado na rua,
perguntei-lhe quantos filhos tinha e ela foi me apontando cada um
e falando um pouco sobre cada filho. Contou-me também que até
pouco tempo atrás cuidava de um bebê que é filha de uma amiga
que esta interna na Febem porque foi pega roubando no farol. A
Mineira estava muito chateada porque haviam lhe tirado o bebê e
levado para um orfanato, já que ela não era a mãe e o pai da
criança não queria reconhecê-la. Disse que quando a mãe da
criança - uma adolescente de quinze anos -, telefona para saber notícias
chora muito. Ela lamentou não poder fazer nada, nem visitar a
criança ela pode, para isso precisaria de uma autorização
especial do Conselho Tutelar. Eu fiquei ali ouvindo aquela história
e pensando... Duas mães querendo muito uma criança... Na hora eu
me lembrei da história de uma das crianças da Creche Asas
Brancas que visito regularmente e contei para a Mineira. É sobre
uma linda menina, uma boneca, que chegou lá com menos de dois
anos. Teve a guarda retirada da mãe, embora a mãe tenha outros
filhos, sendo que um menino mais velho que a menina também está
nessa creche, na unidade masculina. O que me espanta nessa história
e que contei para a Mineira é que a mãe sempre vai visitar o
menino, mas nunca mais veio ver a menina. Hoje ela deve estar com
uns quatro anos, quando a mãe foi questionada sobre essa sua
postura diferenciada, alegou que não gosta da menina. Incrível,
não? Como pode? Que diferença entre essa mãe e a Mineira, não?
Que lição!!!
As crianças passavam correndo de um lado ao outro, os presentes iam sendo
entregues, nosso pessoal revezava-se, aos poucos o ritmo foi
diminuindo, a Mônica conversava com a Mineira, até a nossa
fotografa que clicava a todos deu uma parada e teve seu momento de
dialogar. Um pouco mais afastada da porta, a Raquelzinha
conversava com uma das moças grávidas de uma forma que, vendo de
longe, pareciam duas comadres
que se conheciam de muito tempo. Mais tarde ela me resumiu esse diálogo
– procuro um adjetivo para caracterizá-lo para vocês, mas só
ela descrevendo para que percebam a riqueza humana que ele contém:
Shirley, a menina que na semana anterior recebera lições
de matemática do Eduardo, puxou-me de lado para fotografá-la com
uma amiga. De pronto, achei que era uma coleguinha da mesma idade
infantil, porém foi com uma moça grávida que a pequena
sorridente queria ser fotografada. Após ligeira pose, Shirley saiu
novamente para brincar e comecei a conversar com essa moça, da
qual, até o momento, não me lembro o nome, mas, ainda que
permanecendo no anonimato, lembro-me perfeitamente o tom de voz
desolado com o qual me contou sua experiência. Jovem,
provavelmente com menos de vinte anos, esperava o nascimento do
quarto bebê. Disse-me que no início pensara em abortar, já que
a situação difícil não lhe dá condições de manter os três
filhos, ela e o marido, mas aceitando conselho da tia decidiu
deixar a gravidez seguir adiante. Quando perguntei em que hospital
pretende ter o bebê, não recebi resposta, apenas contou-me que
cada um deles nasceu num local, dependia sempre onde ela estava,
quem a socorria levava ao local mais conveniente. Depois acabou
dizendo que gostaria que fosse no Hospital Beneficência
Portuguesa, porque já teve referencias boas de lá – quem tem
filho ali, não sente dor, disse. O último parto, há menos de
dois anos, aconteceu depois que visitou o namorado no presídio, a
bolsa rompeu e foi levada para a Santa Casa. Já escolhera os
nomes, se for menina será Josiane em homenagem a mãe já
desencarnada e se for menino será Wesley em homenagem ao cunhado
assassinado há alguns meses. Ao acariciar a barriga dela, senti a
vibração de uma vida e percebi que o milagre cerca-nos em todas
as circunstâncias! Fiquei emocionada ao perguntar aonde mora, é
um local bem distante de onde estamos. Quilômetros caminhados
para desfrutar a companhia da Mineira e de sua família. Pensei
nos meus amigos e nas facilidades que temos de usufruir da
companhia alheia – telefone, carro, enfim, e que muitas vezes
negligencio, quantas vezes utilizo esses recursos somente para
pedir algo... meditei nesse exemplo. Percebi a importância de
ouvi-la, simplesmente ouvi-la, sem críticas, sem censuras, apenas
aceitando sua história, apenas deixando que ela percebesse
que naquele momento estava com ela, me importava com o que ela
queria contar. Foi delicioso tirar fotos, capturar o brilho no
olhar daquelas crianças e registrar numa fotografia, tornar àquele
momento imortal prendendo-o num pedaço de papel... mas essa história,
essa história esta registrada na memória do meu coração!
O tempo correu.
Novas crianças continuaram a chegar, claro que tivemos que
recorrer aos brinquedos extras que haviam ficado nos porta-malas
dos carros.
– Tia,
cheguei agora, não ganhei nada.
– Tio, não
tem meu nome na lista, será que não sobrou mais nada, tio?
Com variações,
a última meia hora testemunhou vários diálogos desses. Para que
tenham uma idéia da superação do número inicial de crianças,
no dia seguinte, ao passar a lista da prancheta a limpo,
levantamos setenta nomes diferentes, mais de três vezes o número
inicialmente previsto. Fomos salvos pelos “presentes extras”,
que Deus os tenha. Quando por volta das vinte e duas horas e
trinta minutos começamos a nos despedir não havia mais quase
nenhum presente nos carros.
Pouco antes da
oração final a Mônica e o Álvaro conversaram com o Adilson,
marido da Mineira, sobre as bonecas que ele aprendeu a fazer. Ela
ouvira eu lhe perguntar se ele poderia fazer mais dessas bonecas,
a que a Gisele levara na semana anterior fizera enorme sucesso em
cima de sua mesa de trabalho. Pela resposta meio sem graça dele
perceberam que alguma coisa o perturbava e foram indagar quando
conseguiram se aproximar. Perguntaram-lhe como fazia para arrumar
material para confeccioná-las, ouvindo que ele não tinha mais
material, as que ele tinha prontas foram feitas na prisão onde
estava e agora, desempregado, não tinha dinheiro para comprar
material. Aproveitaram a brecha e pediram-lhe que lhes informasse
que materiais usava, ficando sabendo que para cada boneca ele
precisa de quatro a cinco novelos de lã, linha de nylon n.36 e a
cabeça de plástico da boneca. Prometeram tentar arrumar o necessário
para que fizesse mais dessas graciosas bonecas.
Preparávamos
para nos organizar em roda para a oração de encerramento e a
despedida quando o telefone celular da Solange toca, era o Edu,
mais uma vez. Lembrara-se de um recado a ser dado a Mineira, mas
coloquei é o Sávio para falar com ele ao telefone. Brinquei mais
tarde, foi o ausente mais presente que já vira.
Uma roda de mãos
dadas tomou conta da pequena rua, pedi a Mineira que fizesse a oração.
Espalhados pela roda, todos nós, a família da Mineira e mais
algumas outras pessoas, um cachorro cego a pular em cima da
Raquel, Sávio berrando preocupado com o gato embaixo do carro,
Shirley de novo querendo trocar de lugar, muitos sorrisos.
Iniciou-se um sentido Pai-Nosso acompanhado por todos, ainda
agradecemos a ela por nos receber em sua casa com a simpatia e a
simplicidade natural que possui.
Dois dias
depois soubemos pelo senhor Roberto que as obras na casa da
Mineira já começaram. A todos nós resta a reflexão sobre os
caminhos que nos levaram até eles. Quem está aprendendo o quê,
e com quem?
abraços
Maurício
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