História da Mineira 4
– ah, se eu tivesse uma máquina fotográfica
agora!
21 de setembro.
O inverno vai acabando e a primavera é anunciada em todo o seu esplendor. A
primavera nos lembra a flor se abrindo em um sorriso, nos lembra a alegria,
exatamente a palavra que retrata bem o estado de espírito que imperou na casa
da Mineira na noite de 21 de setembro de 2003.
Nessa noite
combináramos de levar Paulo para que conhecesse a Mineira. Ele é nosso novo
amigo, advogado em São Paulo, que deverá pedir aos órgãos públicos
competentes para que seja restabelecido o fornecimento de água para a casa
dela.
8:00hs da noite
- Reunimo-nos no Centro Espírita Auta de Souza. Paulo, Eduardo, Gisele e
Mauricio. Separamos algumas roupas variadas que nos haviam doado, saias, calças,
casacos, camisetas. Gisele trouxera também alguns brinquedos e conseguira a doação
de outra cesta básica, doada pela nossa amiga Elizete.
Paulo nunca
fora em nenhum trabalho social desse tipo antes. Aproveitamos para conversar um
pouco, ele se mostrou interessado, disse-nos que tinha tempo e que estava lá
para ajudar; realmente, no decorrer da noite mostrou uma desenvoltura que não
é comum nas pessoas que nos acompanham pela primeira vez.
9 e pouco da
noite - Eduardo estacionava seu carro embaixo da janela da casa da Mineira. Na
semana anterior nós a avisamos que viríamos. Inclusive pedimos que tirasse
xerox do seu R.G. e do seu C.P.F., cópias necessárias para o Paulo pedir a
volta do fornecimento de água. Dessa vez ela já estava nos esperando, não só
ela, a casa estava cheia. Todos seus filhos estavam lá, até a mais velha, de
15 anos, Sheila, que ainda não tínhamos conhecido, estava lá, grávida de 4
meses e com o marido de 26 anos. Conforme nos explicou, ele trabalha catando
papelão na região de Pinheiros, bairro da zona oeste de São Paulo, e arrumara
para morar com ela um quartinho em um depósito de papelão nessa região.
A Mineira veio
nos receber na porta, abrindo seu desfalcado sorriso, disse que já nos
esperava. Gisele a beijou e a algumas crianças que já a rodeavam. Nós outros
três entramos carregados com as sacolas, um saco de lixo preto de 100 litros
com as roupas arrumadas dentro, coloquei no sofá de sua acanhada sala, Paulo
deixou a cesta básica em cima da mesa. Apresentei Paulo e Eduardo a ela,
mostrei rapidamente o imóvel e contei a Mineira que Paulo era o advogado de que
lhe havíamos falado e que iria tentar ajudá-la.
Interessado e
mostrando-se a vontade, Paulo pediu que ela lhe mostrasse os “caminhos” do
encanamento, da onde saia o cano que servia a seus vizinhos. Voltamos a levantar
e discutir sobre a necessidade de relógios de medição de consumo
separados.
Paulo deu como
idéia que poderíamos saldar o débito da conta de água e pedir a um encanador
que colocasse um registro de forma a impedir que seus vizinhos se utilizassem da
água fornecida à casa dela, e os fizesse movimentarem-se junto a Sabesp para
terem fornecimento de água e relógios de medição próprios.
Discutimos várias
vezes a questão, há um certo temor sobre a reação dos seus vizinhos. Eduardo
preocupou-se em tentar descobrir quanto do consumo de água, qual porcentagem,
corresponderia a casa dela e qual a dos outros.
– A senhora
entende o que eu quero dizer com porcentagem? Quanto a senhora acha que dessa
conta é a senhora que gasta?
– Não tem
como saber, Edu – intervi.
– A maior
parte deve ser dela mesmo, porque ela está dizendo que nos vizinhos cada um tem
só uma torneira, enquanto aqui, além de haver 7 pessoas, há tanques, pia de
cozinha e chuveiro. O que provavelmente existe é um grande vazamento, só isso
pode explicar esses valores altos.
– É verdade,
deve ter vazamento mesmo – completou Paulo. O problema é que a Sabesp não
conserta vazamentos, ela só fornece a água até a casa. Vazamento são os
moradores que devem arrumar. Conheço um encanador que faz trabalhos regulares
para minha família, vou falar com ele, até também para ver a questão do
esgoto, reparei que na conta só está especificado o fornecimento de água, não
consta cobrança por esgoto.
– Como assim?
Esgoto?! Não é uma coisa só, junto com a água? – questionou Edu.
Paulo explicou:
– Não, a
Sabesp fornece água e esgoto, são dois serviços, a cobrança vem em conta só,
mas na conta está discriminado o que se refere a um serviço e o que se refere
a outro.
– Como a
senhora faz para usar o vaso sanitário? – perguntei-lhe diretamente.
Quero lembrar
que exponho de forma resumida essa calorosa conversa de mais de 15, 20 minutos.
– Ah, vaso nós
não temos para usar, usamos um balde com um saco plástico, depois colocamos
junto com o lixo da rua, os lixeiros não gostam, xingam algumas vezes, mas o
que podemos fazer, é assim mesmo.
Meus amigos
ficaram aturdidos, a força da realidade sempre nos impacta. Edu logo já queria
chamar um encanador para resolver o problema da água e do esgoto, que assim não
é possível viver.
Ainda apontei.
– Mas todas
as favelas, ou quase todas, são assim. Nos barracos de madeira das favelas as
pessoas fazem assim como ela, elas enchem garrafas de água para beberem,
cozinharem e se lavarem, a luz é puxada de algum poste.
O impacto
chocou, quando a nossa realidade se apresenta constante em sua generosidade, nós
temos dificuldade de imaginarmos a vida sem alguns elementos comuns de nosso
cotidiano.
Essa conversa
resumida acima foi interrompida várias vezes. Em meio as discussões sobre água
e esgoto as crianças fizeram uma “festa”. Gisele entregou cinco pequenos
cadernos espirais que trouxera, que foram disputados como troféus. A segunda
filha da Mineira, Shirlei, fazia aniversário nesse dia, 10 anos! Estava toda
sorriso, beijava a todos, mas também disputava ferozmente cada pequeno mimo que
Gisele lhes entregava. Alex, o irmão do Alexandre, de 5 anos, começara a
chorar porque não ganhara biscoito, pois Shirlei estava com o pacote em mãos.
A terceira filha da Mineira, Sirlene, também de 5 anos, berrava e chorava
porque sua irmã aniversariante não lhe deixava brincar. Sidnei, mais velho dos
meninos, de 12 anos, chega da rua e cumprimenta a todos, está mais sociável
que na semana anterior.
O pequeno Sávio
de 2 anos, quase bom da catapora que o abatera na semana anterior, pedia água a
todos, sentava no colo de um, brincava com outro e mais tarde, pouco antes de
irmos embora, nos proporcionou a melhor cena da noite. Em determinado momento,
quando já ensaiávamos a despedida, olho para uma das cadeiras ao lado da mesa
e vejo esse pequeno dormindo profundamente nos braços da Gisele, a cabeça no
seu ombro, ela, enternecida, o acariciava.
– Ah, se eu
tivesse uma máquina fotográfica agora, você precisava ver seu rosto agora
como está bonito. Pena que não tenho uma máquina agora – disse eu.
Ela ainda
chamou Edu para que visse a cena e depois pediu que eu a ajudasse a colocá-lo
no colchão. Logo que o colocamos deitado, a Mineira, sem graça, pediu se poderíamos
arranjar uma cama, a cama de casal que usava era emprestada e a dona pediu de
volta. Agora deitavam direto sobre o colchão no chão. Nesse colchão de casal
ela dormia com os dois menores e Sidnei ainda dormia ao pé do colchão, porque
o sofá em que normalmente ele dormia estava ocupado pela irmã e pelo marido,
em visita.
A bonita filha
de 15 anos, Sheila, nos avisou que mês que vem faria 16 anos, os cabelos longos
e soltos eram o orgulho da mãe, que também nos mostrou uma velha televisão
que a filha lhe arrumara.
– De vez em
quando tem que dar uns tapas para ela funcionar, mas funciona – sorriu
contente.
Perguntei-lhe
sobre a luz, o fornecimento de energia elétrica. Contou-me que era puxada de
uma casa da rua de baixo, o japonês, dono do imóvel, uma vez dissera que iria
cortar, mas vendo a sua situação com as crianças, acabou deixando.
Foi
complementando essa conversa que nos contou sobre sua vida com as crianças mais
velhas antes de ocuparem esse imóvel que estava abandonado, por volta de 10
anos atrás. Morava na baixada do Glicério, embaixo de um viaduto perto do
posto dos bombeiros, não tinham aonde ir, catavam papelão, várias vezes a
promotoria ameaçara tirar-lhe os filhos caso não saíssem da rua. Nessa ocasião
é que encontraram e ocuparam o imóvel que estão até hoje.
A Mineira ainda
contou ao Paulo o que já nos dissera, sabe que tem processo sobre o imóvel na
justiça, mas não tem a menor idéia sobre como está o processo. Continuando
nas questões jurídicas que permeiam seu horizonte falou ao Paulo que seu
marido está para obter liberdade condicional, mas ainda não conseguira.
O mais agradável
é o seu sorriso e a agradável simpatia que nos recebe, abre a sua casa
querendo de alguma forma que fiquemos à vontade nas restritas condições com
que pode nos receber.
Conversamos um
pouco mais com a filha mais velha, a Sheila, sobre os exames que fizera.
Perguntamos: “acha que é um menino ou menina”? Ela respondeu o que acha, e
que inclusive já sonhou que era menino.
Antes de nos
despedirmos, todos os pequenos repetidamente vinham nos mostrar os desenhos que
haviam feito nos cadernos, “é um coração”, “isso é um carro, tio, é o
seu carro”. Claro que tínhamos que nos mostrar interessadíssimos nos
desenhos, logo apareciam outros e mais outros desenhos, “vê esse agora,
tio”.
Finalmente,
antes de nós realmente nos despedirmos, conseguimos reunir todos na casa e, de
mãos dadas, em roda, oramos.
Edu lhe
perguntara:
– A senhora
acredita em Deus?
– Acredito,
sim. Fiquei presa 5 meses e quem me tirou de lá não foi o advogado, foi Deus.
Depois do
Pai-Nosso puxado pela aniversariante e contando com o coro de todos, sem exceção,
Edu deu a ela a edição de bolso do “Evangelho segundo o espiritismo” que
tinha em seu carro.
A Mineira
acompanhou-nos até a porta, respondendo ao Paulo que não sabia porque lhe
deram esse apelido, ela era de São Paulo, nascera no Jabaquara. Edu e Paulo
entravam no carro enquanto ela acabava se despedir de nós e, falando cheia de
um jeito mineiro de ser, nos agradeceu:
– Que bom que
conheci vocês, que bom que vocês apareceram!
abraços
Maurício
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