História da Mineira - continuação
(31/08/2003)
Uma
semana depois, domingo, 31 de agosto de 2003. Não houve um
compromisso concreto de nossa parte que voltaríamos, muito menos
que essa suposta volta fosse na semana seguinte. Ao nos
despedirmos da Mineira falamos que se conseguíssemos alguns
produtos (comida e roupa) retornaríamos. Lembro-me ainda que
disse que tentaríamos angariar latinhas para que ela pudesse
vender. No dia seguinte à nossa primeira visita, iniciou-se uma série
de emails que foram trocados entre o Edu, a Gisele e outras
pessoas que se interessaram em ajudar de alguma forma.
Terça-feira, o relato da nossa primeira visita a
ela já estava no website do siteamigo, conversas por telefone lá
e cá, discussões do que fazer, o que levar, de mais ou de menos,
a que isso poderia nos levar. Uma amiga ofereceu uma caixa de
leite (Alda), conseguimos roupas, uma cesta básica, alguns
biscoitos e chocolates para as crianças e uma sacola de
brinquedos. Chegamos a conversar a três por telefone ao mesmo
tempo (conference call), acabamos por definir que o que fora
levantado bastava para essa segunda visita.
O
que mais pretendíamos? Algumas idéias nos rondavam, a intenção
de dialogar, conseguir expressar-se de forma mais aberta, realizar
uma ação que superasse o estigma do entregar de boa vontade, dar
as costas e voltar para nossas casas. Uma maneira de sentir o
outro, ouvir relatos de vidas pode ser o caminho para
compreendermos a realidade das pessoas que encontramos e começar
a traçar novas fronteiras de trabalhos. Mais uma vez, me
repetindo, de alguma forma superar o estigma do assistencialismo,
mesmo que feito com pureza, exercido pela classe média que olha
de cima, e lembrar um princípio básico do cristianismo: todos
somos filhos de Deus. As diferenças sócio-culturais, a família
em que cada um nasceu, a educação que recebemos, a renda que
obtemos, se isso nos afasta de certo modo, serve também como
aguilhão para que lembremos de Cristo e mesmo do Cristianismo
Redivivo, somos todos espíritos. Afinal, de alguma maneira esse tipo de ensinamento está sempre nos sendo
transmitido pra que não apenas aprendamos, mas os coloquemos em
prática, com coração e boa vontade.
Novamente combinamos de nos encontrar no Centro Espírita
Auta de Souza, na Vila Mariana, às 20hs, dessa vez estávamos em
quatro pessoas, Edu, Gisele, Dª Lourdes e eu, Mauricio. Logo estávamos
desempacotando pacotes de roupas doadas, separando calças,
camisas, shorts, roupas masculinas e femininas, discutíamos como
separar, o que seria melhor levar com o que, dobrávamos pra cá e
pra lá, eu confessava minha falta de habilidade no manuseio e na
organização de roupas. Após algumas dúvidas, reunimos tudo no
carro do Eduardo e nos apertamos lá os quatro. A direção do
Centro havia nos cedido também treze cobertores. Havia sacolas no
colo das mulheres, o porta-malas estava abarrotado, e após uma
oração, partimos.
Assim que saímos pediram-me que escrevesse a
continuação da História da Mineira que havia escrito na semana
anterior, isso logo me preocupou. Não sei se por excesso de pudor
ou falta de confiança de minha parte, mas a beleza do ânimo e a
pureza de sentimentos que sentia emanar de meus amigos me
preocupava, já vi tantos voluntários extremamente animados
desanimaram tão rapidamente quando a reação das pessoas não
corresponde à expectativa deles. Tentei contemporizar, vamos
esperar para ver o que acontecerá durante a noite, mas também
me sentia dividido, é péssimo o papel de desanimar os animados.
Quando
chegamos ao Glicério e estacionamos ao lado da pequena rua onde
fica a casa da Mineira, procuramos nos situar melhor. A rua
chama-se Egas Moniz de Aragão, estacionamos perpendicularmente a
ela, a 100 metros da avenida Liberdade. Descemos e fomos bater na
porta da casa da Mineira, nº 71. Como costume bati na porta da
pequena casa e nada. Bati, nada, bati, nada, nenhum sinal de alguém.
Lembrei-me que na semana anterior a vizinha que havíamos
encontrado batera forte e berrara na janela, não me aventurei a
tanto. Alguns minutos de expectativa e apareceu a adolescente de
14 anos que indicamos no texto anterior, filha de uma conhecida da
Mineira. Dormia lá de vez em quando. É, ela não estava mesmo,
havia ido lavar roupa na rua de cima, na casa de uma amiga, a sua
água fora definitivamente cortada.
– Você pode ir chamá-la?
– Quer que vá chamá-la?
– É, nos viemos no domingo passado, trouxemos
algumas coisas para ela. Você pode ir chamá-la?
– Vocês querem vir comigo? Podem vir, é logo
ali.
Após
rápida conversa entre os quatro, decidimos que seria melhor não
nos separarmos e pedimos que ela fosse chamá-la, esperaríamos.
Encostamos na porta do carro do Edu e ficamos conversando e vendo
a garota lentamente distanciar-se da nossa vista, seria mais um
teste para nossas expectativas e paciência. Falávamos, a
ansiedade nos consumia, no fundo da rua avistamos uma senhora de
gorrinho branco puxando um carrinho de feira que se aproximava
lentamente. Cinqüenta metros à sua frente, chegando até onde
estávamos um grupo de cinco ou seis crianças nos cercaram,
pequenos cachorros vira-latas que os acompanhavam passaram a trançar
em nossas pernas.
Chegando a porta de sua casa, Mineira tirou o
gorrinho (um frio congelava São Paulo nesse fim de semana) e a
reconhecemos.
–
Desculpe, mas a sua vizinha a chamou de Mineira no domingo passado
e ficamos sem saber, como é mesmo o nome da senhora?
– Elizabete.
Ela fala e abre simpático sorriso, mostrando os
dentes, pelo menos os que ela ainda têm.
– Ah, eu vinha pensando em vocês hoje.
Ainda na rua nos apresentou alguns dos seus filhos,
o pequeno de cinco anos, a menina com sarampo, a com boina
vermelha, a Shirley, os sobrinhos, as outras crianças que cuida.
Aproximou-se com o carrinho da sua porta, entrou e convidou-nos a
acompanhá-la.
– Já vamos, temos que pegar no carro algumas
coisas que trouxemos para a senhora.
Assim que abrimos o porta-malas o carro foi cercado
por pessoas querendo ganhar alguma coisa, algumas gritavam:
– É o lanche!
Houve uma certa confusão, tivemos que explicar que
não trouxéramos lanche, sim podíamos dar alguns dos cobertores,
tiramos 2 litros de leite da caixa destinada a Mineira e
entregamos a uma outra mulher, algumas roupas de homem ficaram
para alguns que esperavam o lanche. Com algum custo atravessamos a
barreira humana que se formara e chegamos na sua casa. Coloquei a
caixa de leite no pequeno corredor de entrada da sua casa, onde
ficava o tanque e as roupas penduradas secando. Voltei e o Edu
entregou-me a cesta básica, preferia ficar do lado de fora
tomando conta do carro. Ainda entramos com algumas roupas,
cobertores e a caixa de chocolate e biscoitos.
Sua casa tem dois cômodos, se podemos chamá-los
assim. O primeiro tem uma cozinha simples, o fogão, a pia, mesa
para comer, pequeno armário. O segundo, algumas camas e beliches,
claro que no teto não havia forro, havia as telhas meio que
arrumadas.
Elizabete começou a explicar melhor para Gisele
quem eram as crianças.
– Esses dois, apontava para dois pequenos com
idade aproximada entre 6 e 8 anos, são filhos da minha amiga que
está presa, eu cuido deles.
– Por que ela foi presa?
– A Polícia pegou ela vendendo?
– Vendendo?
– É,
passava aí.
– A senhora quer dizer que ela vendia maconha?
– É, crack também.
O ambiente em que se vive, a falta de dinheiro, a
tentação que aparece, o atalho para o ganho, o custo de tudo
isso. Tentamos calar nossos julgamentos morais, não estávamos lá
para isso.
– E a menina adolescente que chamou a senhora, ela
continua dormindo aqui?
– Agora não! Falei que ela podia dormir aqui se
parasse de vender, porque senão vem a polícia, se ela está
vendendo eles podem entrar aqui. Já uma vez os
policiais subiram
na minha janela, falei para ela, se parar de vender pode dormir
aqui.
– A senhora tem muitas crianças para cuidar, se a
senhora for presa quem vai cuidar deles?
– É, por isso que disse, se ela parar de vender
pode dormir aqui, para escola ela já não está indo, fica só na
rua, andando com eles.
Ela
estava com o menor no seu colo enquanto conversava conosco, a
maior, Shirley, só sorria ao seu lado, a que estava com sarampo,
retraída no canto, os meninos, os dois da amiga e o outro seu nos
rodeavam, envergonhavam-se mas ficavam contentes quando a Gisele
os beijava.
– E o pai desses meninos, esses da sua amiga que
está presa?
– Ah, esse já tem outra família, não quer mais
saber dessa.
– E o pai dos seus?
– O pai dos meus está preso, a polícia pegou
vendendo, ainda tem quatro anos, meu último eu fiquei grávida em
visita a cadeia. (- há um sistema em alguns presídios que
permite visitas íntimas aos presos).
Pergunto-lhe sobre o problema da água, fora cortada
finalmente, e a ligação clandestina que fizera, também
cortaram?
– É, algum vizinho dedurou, a Sabesp veio e
cortou o cano da ligação clandestina.
– A conta de água que a senhora deve, está muito
alto o valor?
Ela me mostra as contas antigas e começa a
explicar. Eu, a primeira vista achara estranhamente alto o valor
da conta mensal, mas compreendi quando me disse que os vizinhos da
casa de trás haviam feito uma ligação clandestina do seu cano
de água para o deles, ou seja, eles consumiam a água que estava
sendo registrada como direcionada para a casa dela, mas se
recusaram a cooperar no pagamento, quando ela pedira contribuição
para o pagamento da conta ameaçaram-na fisicamente. Como conseqüência
disso o valor da conta subiu muito, ela não teve condições de
quitar e a água foi cortada. Elizabete agora tinha que ir até a
casa da amiga em que estava quando chegamos para lavar roupa e
buscar água para cozinhar. Ficamos numa situação delicada, pensáramos
que se o valor não fosse alto poderíamos tentar ajudá-la,
dividir a conta dela, os atrasados, mas com o vizinho utilizando a
água dela dessa maneira essa questão apresentava-se mais
complexa. Anotamos o número do logradouro existente na conta da
Sabesp que ela nos mostrou e
ficamos de levantar a realidade do débito.
– E comida, a senhora está conseguindo comprar?
– Comida, eu tô. Catando papelão, latinha, dá
para comprar comida.
– E essa casa, de quem é, é da senhora mesmo?
– pergunto.
– É invadida. Já estou aqui há 8 anos. A casa
é da Associação da Polícia Feminina, está na justiça o caso.
– Todas essas casinhas da rua são dessa Associação
da Polícia?
– Todas são.
– Bem, sei que esses processos se arrastam por
longo tempo, além do que me parece que o direito de posse urbano
dá algumas garantias para quem há está pelo menos cinco anos no
mesmo lugar.
Antes de irmos embora, depois que Gisele beijou mais
uma vez todas as crianças, perguntamos o que mais ela está
precisando.
– Produto de limpeza, para comer eu me viro.
Despedimo-nos, ouvimos muitos agradecimentos e saímos
enquanto eu comentava que raramente valorizamos a vida que temos.
Gisele comentava comigo enquanto nos aproximava-nos do
carro, não é possível que
tenha sido o puro acaso que nos trouxe até aqui. Realmente,
apesar da casa simples, da bagunça aparente, enquanto estivemos lá
reinou na casa um ambiente de tal leveza, tão aconchegante, que
ficamos bem surpresos; pareceu-nos até que poderíamos ficar lá
mais um bom tempo conversando com ela.
Minha amiga Gisele ainda comentou:
– Ela é humana como nós. Nessa vida, nesse
momento, enfrenta uma realidade material um pouco menos favorável.
Estamos um pouco mais favorecidos, mas nem por isso podemos nos
considerar descompromissados, alheios. Ao contrário, nossa consciência
é mais atuante e o nível de cobrança é acentuado, já que
inclusive nos propomos a sermos instrumentos de alívio material,
carinho ao próximo, exatamente por termos consciência dessa
realidade humana x espírito. Acho que no mínimo em um aspecto
ela é mais elevada que nós. Veja o compromisso que aceitou de
cuidar de tantas alminhas, filhos dela e de outras pessoas. Acho
que de alguma maneira devemos orientá-la e ajudá-la.
Ao entrar no carro, vamos comentamos o que
conversamos com o Edu, que infelizmente ficara do lado de fora da
casa. Pensativos nos retiramos.
abraços
Maurício
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